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Um mundo lindo, de Marina Colasanti

Morreu o último caracol da Polinésia. Havia um caracol da Polinésia, um caracol de árvore, e nenhum outro. Era o último. E morreu. Morreu de quê? Ninguém sabe me dizer. O jornal não acha importante revelar a causa mortis de um caracol da Polinésia. Noticia apenas que com ele extinguiu-se a sua espécie. Ninguém nunca mais verá em lugar algum, nem mesmo na Polinésia, um polinesiano caracol.


Pois eu ouso dizer que sei o que foi que o matou. Ele morreu de ser o último. Morreu de sua extrema solidão. Sua vida não era acelerada, nada capaz de causar-lhe stress, mas era dinâmica; ao longo de um ano, graças a esforços e determinação e impulso fornecido pela própria natureza, o molusco lograva deslocar-se cerca de setenta centímetros. Mais, teria sido uma temeridade. Assim mesmo, de que adiantavam esses setenta centímetros suados, batalhados dia a dia, sem ninguém para medi-los, sem nenhum parente amigo companheiro que lhe dissesse, você hoje bateu sua marca? Sem ninguém para esperá-lo na chegada?


O último caracol da Polinésia olhava ao redor e não via ninguém. Ali estava, frequentemente, seu tratador – o caracol vivia no Zoológico de Londres – mas o tratador não era ninguém, o tratador era qualquer coisa menos importante que o tronco sobre o qual o caracol se deslocava, o tratador era de outra espécie. E via, sim, de vez em quando via os pesquisadores que o examinavam olho agigantado pela lente. Mas os pesquisadores não tinham uma concha rosada cobrindo-lhes as costas. Os pesquisadores também não eram ninguém. Então o caracol da Polinésia olhava o mundo, e o mundo estava vazio. E como pode alguém viver, como pode alguém querer viver num mundo esvaziado de seus semelhantes?


Seguramente ele era muito bem tratado no Zoológico, comida não havia de lhe faltar – o que come, comia, um caracol da Polinésia? – e de dia e de noite estava livre de predadores. Seus antepassados, talvez ele mesmo na infância, tinham tido que lutar pela sobrevivência. E a vida era dura. Mas lutavam em companhia. Quando um deles era esmagado – quantos caracóis são esmagados mesmo na Polinésia! – outros lamentavam sua sorte. Quando um deles se atrasava em sua marcha – é tão fácil a um caracol se atrasar – outros esperavam por ele. Havia sempre companheiros. E o mundo, povoado de companheiros, era lindo.


Mas os outros, os outros todos foram acabando aos poucos, vítimas do único predador disposto a transformar suas conchas em objetos turísticos. E o último caracol da Polinésia, cansado de ser o último, cansado de ser tão só, deixou-se pisar pela Morte que passava apressada, certo talvez de poder renascer em algum mundo lindo, em que milhares de ovos de caracol preparam-se para eclodir.


Marina Colasanti. In: A casa das palavras. São Paulo: Ática, 2002. p. 15-16

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